Num dia em que os sapatos te apertam, mas você não quer perder o bom humor, acontecem mais coisas para te testar até o fim.
Voltando da faculdade pra casa de trem, lá pelas dez e tantas da noite, como um dia qualquer da semana, acontece o inusitado.
Na estação Luz, o trem que aguardo, finalmente chega. Eu me sento, começo a ler uma das três revistas que acabo de ganhar de um professor e pouco antes do trem partir, um guardinha e pede: A srta. pode ceder o lugar para ele? – se referindo ao ceguinho que o acompanhava. Eu, sem hesitar concordo e me levanto.
O rapaz senta e fala alguma coisa que não consigo entender. Ele parece fanho. Há um grande ruído dentro do trem: pessoas falando alto e o ventilador demasiadamente barulhento que me impedem de escutar o que o rapaz tem a dizer. O trem parte.
Em menos de um minuto ele se levanta e exclama: A sra. não quer sentar? Não! Fique à vontade, respondo. Ele retruca: sente-se. Estou voltando de um passeio e a sra. provavelmente do trabalho. Eu treplico: Imagina! Estou voltando da faculdade. Trabalho sentada, estudo sentada. Não há problema algum. O sr. Pode ficar. Ele insiste. Eu paro de discutir e continuo a folhear agora em pé, a minha revista.
Ele se levanta e para que eu me sente. “Não adianta, eu não vou sentar” – digo ainda com um pouco de tolerância e presteza que me resta. Ele permanece em pé. Todos olham. E eu continuo a folhear a revista.
Ele passa dez minutos em pé. Eu troco de revista. O trem está lotado. O lugar só não foi ocupado por outro, porque haviam algumas pessoas bloqueando a passagem para o canto de onde estávamos. Sabe como é, as pessoas nunca se distribuem bem em ônibus, trem, ou metrô. Sempre há um lugar vazio (ou menos cheio) e outros extremamente habitados.
Chega na Lapa. O Trem pára e o maquinista informa que estamos aguardando ordem de partida. Mais quinze minutos. O ceguinho resolve puxar assunto novamente e diz o quanto fica indignado sobre quando uma moça tem de levantar, enquanto um homem que estava ali sentado, não cedeu lugar. Este, aliás, resmungava sem parar porque o trem permanecia parado. Como resposta, digo aquelas frases feitas, que não concordam e nem discordam: “É fogo”.
Eu alerto: Vou descer logo. O assento continua vazio. Se quiser sente-se, já que daqui a Francisco Morato, é uma hora de viagem. Ele concorda e se esbarrando nas pessoas senta novamente.
O homem que resmungava está em pé procurando pela janela, o que fez o trem parar. O ceguinho deduz que o espaço que se abre ao lado dele está vazio, logo, vai tomando espaço e me convida pra sentar ao lado dele.
Naquela cena trágica, permaneço tentando ler a revista. Em vão, já que minha visão periférica, a estas alturas me distrai completamente. O homem infezado, manda o ceguinho voltar ao lugar dele, pois ele não havia saído e sim levantado temporariamente.
Todos olham, alguns comentam. O homem foi mal educado? Ou dava um fora bem dado no ceguinho que estava sendo suficientemente chato? O ceguinho arrasta a bunda voltando ao lugar. O trem retoma partida.
Mais duas estações estou em casa! - penso com meus botões e pés latejando dentro dos sapatos.
O ceguinho me pede um favor, me entrega o celular dele para que eu disque um número. É o número da casa dele. Disco e entrego o aparelho já chamando. Parece que a ligação não completa. Ele pede novamente. Repito a cena. Ele sem graça, me pede desculpas, mas agora quer que eu procure na agenda do celular o número da Erica. Acesso a agenda e coloco a letra ‘e’. Nada encontrado. Desço o alfabeto. O nome da moça começa com ‘h’. Entrego o celular. Ele finalmente consegue avisar por telefone que está a caminho de casa.
Há duas estações, ele finaliza o contato telefônico. Comenta: Certeza que não quer sentar? Não! Desço na próxima. - digo já em tom mal educado. Ah, ok - ele finaliza.
Chega a estação do Piqueri. A porta abre. Permaneço imóvel. Ele com o pé quase à minha frente não sente qualquer movimentação. A porta fecha. Ele ironiza: “Você não desceu aqui...”
Não sabia se ria ou se mandava ele para um lugar bem feio. O trem se movimenta e agora sim, a próxima estação é a minha!
Desço do trem. Meus pés doem por ter ficado todo o tempo em pé. Feliz por ter chegado e me livrado do mala daquele cego fanho, sinto um ardor no calcanhar. É uma bolha, que acaba de estourar.